Há muito tempo ouvimos falar dos caminhos que levam a Santiago de Compostela, com relatos de pessoas que andaram por quilômetros todos os dias, sempre enaltecendo seus feitos.
Antes mesmo de nossa saída para nosso tour pela Europa, programamos fazer um dos caminhos.
Pensamos no melhor período, compramos os equipamentos necessários, planejamos as etapas e, ainda em Lisboa, na Catedral da Sé, adquirimos os mapas e os passaportes ou Credenciais de Peregrinos.
Nos meses que antecederam nossa partida, quase todos os dias, treinamos andando pelas ruas de Lisboa. Alem de preparar o físico para a jornada, conhecemos a cidade em detalhes.
Saímos de Lisboa e fomos de trem até a cidade do Porto, de onde partimos a pé até Santiago de Compostela.
Na cidade do Porto, fomos direto para a Catedral da Sé, pegar informações e o primeiro carimbo em nossos passaportes do peregrino.
Passeamos pela cidade, almoçamos sardinhas na brasa, compramos conchas do peregrino e fomos para o hotel descansar para iniciarmos a caminhada no dia seguinte.
Mochilas carregadas, mapas nas mãos e lá fomos nós conhecer a magia de um dos caminhos que levam a Santiago. Foram 260 quilômetros percorridos, em 10 dias, sem contar os desvios e os passeios à noite, após cada jornada diária.
Vou descrever e ilustrar nosso caminho em capítulos, não dia-a-dia. Escrever e ilustrar este post, completa nosso plano, deixando um pouco de nossa história, esperando ajudar na decisão de quem pensa em fazer uma longa caminhada.
Santiago de Compostela tornou-se um dos mais famosos locais de peregrinação do mundo, sobretudo na Idade Média.
Após a descoberta do sepulcro de São Thiago, em 1077, o Rei das Astúrias, Afonso II, buscando reforço e coesão em seu governo, fez uma peregrinação até o local, mandou construir uma pequena igreja e passou a conceder indulgência plena pelos pecados a todos que peregrinassem até o santuário na Galícia.
Thiago, o Apóstolo preferido de Jesus, peregrinou pelas regiões da Espanha e Portugal, evangelizando pessoas. Após sua morte na Judéia, seu corpo foi transportado por seus seguidores, para longe de onde foi martirizado.
Conta a lenda que seus seguidores pediram um meio de transporte para uma fazendeira para levar o corpo de Thiago. A mulher descrente, ofertou seus bois mais bravios para dificultar a tarefa dos fiéis. Quando viu que os bois ficaram mansos após receber o corpo do santo homem, se converteu e caiu de joelhos em orações. A carroça com o corpo de Thiago, trilhando as rotas por onde ele evangelizou, parou onde hoje se encontra a Catedral de Santiago e os bois bravios não mais andaram. Entenderam então que ali seria o local de seu sepulcro e assim o fizeram.
Outra lenda conta que o espírito de Thiago apareceu em vários combates durante a reconquista cristã diante dos mouros naquela região, ganhando o apelido de “matamouros”.
Lendas ou fatos acontecidos, a verdade é que a cidade de Santiago, considerada a terceira mais sagrada no cristianismo, depois de Jerusalém e Roma, recebe milhares de pessoas do mundo todo em peregrinação.
A fé é lembrada pelas igrejas nos caminhos por onde passam os peregrinos. São várias delas, cada uma com sua característica própria. É sempre uma emoção entrar, admirar e orar para agradecer.
A cada hora, por onde passamos, ouvíamos o badalar dos sinos, fantástico.
Alem das igrejas, existem muitas pequenos santuários mantidos por particulares nos seus quintais ou frente de suas casas.
Os caminhos que levam à Santiago já foram bem mais impulsionados pela fé, percorrido por pessoas com propósitos de agradecer por graças recebidas.
Não encontramos nenhum peregrino pagando promessa. Quase todos fazem o trajeto para testar sua resistência ou até, por puro exibicionismo. Desculpem eu falar assim mas foi o que percebi, depois de observar, conversar e ouvir histórias que me fizeram crer que muitos fazem o caminho apenas pelo glamour, para pregar o Certificado de Distância na parede e se vangloriar de seu feito.
A fila para pegar o Certificado é enorme, todos os dias. O documento escrito em latim, que só é concebido àqueles que caminharam alem de 100 quilômetros a pé ou a cavalo, ou ainda 200 quilômetros de bicicletas.
Houve o tempo em que peregrinos caminhavam expondo seus limites em troca de graças recebidas ou consciência conquistada. Naqueles tempos, haviam pelo caminho pessoas fraternas, voluntários, verdadeiros ajudantes da fé.
Depois o caminhante passou a ser chamado de “turisgrino”, aquele que fazia turismo barato pela Europa.
Hoje o “turisgrino” já não faz um turismo tão barato assim. Os ajudantes da fé agora são pequenos comerciantes que vendem nas igrejas, restaurantes ou cafés. O pagamento agora não é mais doação, tem um preço fixo e não são baratos.
Em busca do glamour do certificado, os novos “turisgrinos”, que vou continuar chamando de peregrinos, são pessoas de posse, caminham com bons equipamentos, comem em bons restaurantes, nem sempre dormem em albergues municipais e tem disponível serviços de transporte de cargas e até taxi ou vans, que ajudam nos trechos mais difíceis.
Encontramos uma van, que transporta pessoas que certamente não carregam peregrino na alma, querem mais é o certificado.
Alguns levam até um passaporte a mais, pegam os carimbos e levam o certificado para um amigo que não veio.
Encontramos um fanático por caminhadas, o italiano Pepe, 73 anos, que está na foto abaixo. Ele já fez várias vezes vários caminhos que levam à Santiago e prefere o Caminho Português, que já fez quatro vezes. Ele nos contou que já não faz mais o Caminho Francês por conta da quantidade e da falsidade das pessoas. Disse ele que já viu mulheres caminhando até com sapatos de salto.
Tem o caminho Francês, que na verdade sai da divisa da França com a Espanha, o trecho todo é na Espanha mas chamam de caminho francês, acho que pelo glamour. Tem o caminho inglês, o de Madri, o de Sevilha, o de Lisboa, do Porto e até alguns mais aventureiros que partem de Barcelona, Genebra ou de Moscou.
Quase todos os caminhos foram traçados pelos trilhos percorridos pelos romanos ou outros povos do passado, que cobriam as trilhas com pedras para orientar as direções.
O caminho que escolhemos, o Central Português, já está bem alterado, muito asfaltado dentro das cidades, desvios e pontes novas. Mas em muitos trechos ainda está mantido o piso original.
Alguns trechos é preciso muita atenção. O caminho passa por rodovias movimentadas, onde nem sempre é possível caminhar pelo lado esquerdo, conforme recomendado.
Os outros caminhos também sofreram alterações com o crescimento das áreas urbanas e os incrementos da modernidade. Outro peregrino de profissão nos contou que o mais primitivo de todos é o caminho que sai de Madri.
A sinalização, padronizada em todos os caminhos que levam à Santiago, é muito bem organizada e dificilmente um peregrino se perde pelo caminho.
Setas amarelas indicam a direção a seguir e os caminhos errados estão marcados por um “X”, também na cor amarela. Mas existe também outros sinais pelo caminho. O mais comum depois das setas amarelas é a concha com as ranhuras apontadas para o caminho.
Os caminhos portugueses estão sinalizados também com setas na cor azul, sempre contrárias às amarelas. Elas indicam o caminho até o Santuário de Fátima, trilha que ainda estão divulgando como mais uma opção para os peregrinos.
A sinalização tradicional, colocadas há séculos, são pequenos mourões em concreto ou pedras com a marca do Caminho, indicando a direção.
Encontramos e conhecemos muitas pessoas e, durante a caminhada, cruzamos e caminhamos juntos com peregrinos de várias nações.
A maioria são alemães e holandeses. Conhecemos Paco, 69 anos, peregrino de profissão, já fez todos os caminhos que levam a Santiago, várias vezes. Com sua experiência em albergues, nos contou que o peregrino francês acorda 4 horas da manhã, fazem bagunça e só partem às 7. Os alemães acordam às 7 e saem rapidamente, sem barulho. Os espanhóis acordam as 8 e saem uma hora depois e, os brasileiros, acordam às 10 horas e dançam samba.
Caminhamos com Eva, outra experiente peregrina, que veio da Irlanda, depois com Mônica, novata que veio da Alemanha, com o espanhol Gabriel, que caminha na pobreza, com o norte americano Ricardo que tem muita pressa para chegar, com duas brasileiras da Bahia, com pés cheio de bolhas, mais duas de Brasília, que vieram comemorar os 30 anos de idade, mais um casal de São Paulo, que transportavam suas mochilas em veículos alugados.
Tinha momentos que caminhávamos em grupo, mas logo cada um seguia seu ritmo, separava e depois novamente nos encontrávamos nos albergues, nos cafés ou passeando pela cidade à noite.
Ade conversava com todos e tornava o caminho muito alegre, ensinando e aprendemos palavras de outros idiomas.
Conhecemos uma lenda de um peregrino que se hospedou em um albergue na cidade de Barcelos e a dona do albergue se apaixonou por ele. Como ele estava em uma missão cristã, não quis saber dela. Ela por vingança, colocou um talher de prata em sua mochila e o denunciou como ladrão. Ele foi levado ao juiz que o condenou à morte pela forca. Ele então vendo que o juiz aguardava um galo terminar de assar para fazer sua refeição, disse que era inocente e que aquele galo iria cantar quando ele fosse à forca. Na hora da execução o galo assado cantou e ao abrir o alçapão, São Thiago segurou-lhe, impedindo que ele morresse.
A lenda tornou-se tão famosa que um galo é um dos souvenires mais vendidos em Portugal. Ainda hoje, quando alguém quer provar que algo é verdade, dizem que “o galo vai cantar”, igual “juro por Deus” no Brasil.
Na cidade de Barcelos tem galos por todos os lados, de toda matéria prima, de toda cor e de todos os tamanhos.
Caminhamos alguns quilômetros com Manoel, 67 anos, morador da região que faz seu exercício diário no caminho do peregrino. Ele nos contou quase toda a sua vida em detalhes.
Um outro Manoel, 73 anos, dono de um bar à beira do caminho, nos atendeu e, quando pedi a ele um refrigerante com muito gelo, ele disse “você não vai tomar refrigerante não, vai tomar cerveja. Eu tenho aqui cerveja da Alemanha, muito boa e vocês tem que provar”. Diante da irresistível proposta, tomamos a deliciosa cerveja e rimos muito com as histórias de um velho homem que vende cerveja alemã, mas fabrica seu próprio vinho e toma três garrafas por dia.
Um dia no albergue, sentamos no jardim com pessoas da Irlanda, Alemanha, França, Espanha, Nova Zelândia, Austrália, Estados Unidos, Noruega, Rússia e Brasil. As conversas giraram em torno do inglês, mau falado por quase todos, mas todos se entendiam e foi divertido.
Tiramos várias fotos com pessoas que encontramos pelo caminho e até, depois de bem observar os passos de uma dança, dançamos um pouco em um baile de rua em uma pequena cidade.
O DESCANSO
Percorrer o caminho é uma emoção a cada dia, ou melhor a cada parte do dia. Subidas, descidas, pedras, riachos, plantações e povoados mudam a cada instante, a cada hora, a cada dia.
A maioria dos peregrinos saem cedo dos albergues, muitos antes mesmo do sol brilhar, cheio de vontade com o descanso reparador da noite anterior.
No trajeto existem vários locais próprios para o descanso. A cada uma ou duas horas de caminhada, parávamos de 10 a 15 minutos.
É muito importante levar sempre água e frutas para situações onde quase não existem comércio para te abastecer. A hora do lanche é também a hora do descanso e reflexão.
Nossas paradas foram frequentes. Definitivamente, não passamos pelo caminho, deixamos o caminho passar por nós.
A cada bela paisagem, uma parada e um aproveitamento espiritual. Em alguns locais, paramos para olhar para trás, aproveitando a beleza nos vários ângulos.
No final de cada etapa, os pés doem, os joelhos dão sinais que existem, a mochila dobra de peso e os bastões (cajados), tornam-se ainda mais essenciais, empurrando nas subidas e freando nas descidas.
Em Calda dos Reis, uma pequena cidade, existe uma fonte de águas termais que é um santo remédio para os pés cansados. Importante destacar, molhar os pés, somente no final das etapas. Parar no meio da caminhada e colocar os pés na água pode acelerar o surgimento de bolhas, inimiga número um dos peregrinos.
A chegada no albergue é sempre um motivo para comemoração. Chegar é mais uma etapa vencida e, principalmente, um local para um bom banho e uma cama para dormir. Por mais que fique longe do conforto de nossa casa ou de um bom hotel, um albergue tem sempre o pouco que necessitamos.
É preciso se adaptar e considerar os roncos, peidos e odores desagradáveis. Vários fazem ruídos estranhos durante o sono, mas um gordinho espanhol, roncava que parecia um caminhão na subida, era imbatível, deu vontade de bater nele.
Os albergues municipais são mantidos pela prefeituras e já não são mais gratuitos como até 15 anos passados, quando o peregrino, se quisesse pagar, fazia uma doação da quantia que queria. Hoje existem regras rígidas, registro de entrada, pagamento antecipado e com valores fixos.
Alem dos albergues municipais, que também chamam de oficiais do caminho, existem alguns albergues mantidos por particulares, onde também dormem vários no mesmo quarto e cobram um pouco mais o pernoite. Alguns cobram pelo banho, pelo uso da lavanderia ou da cozinha coletiva.
A outra opção, são os hotéis, com variadas classificações, disponíveis em todo o percurso. Nós optamos pelo hotel na metade do caminho, por culpa do espanhol gordinho e, no final, para o descanso mais prolongado. Paga-se mais e tem mais conforto e privacidade.
Em quase todos os restaurantes e cafés pelo caminho existe o Menu Peregrino para o café da manhã, para o almoço e para o jantar.
Comemos várias vezes o menu peregrino, quase sempre é a única opção, mas também nos esbaldamos com belas refeições em restaurantes e nas festas que encontramos pelo caminho.
Na região ainda se preserva um costume centenário, beber o vinho em tigelas.
O comércio procura atrair o peregrino também com placas, tabelas de preços e até piadinha.
Um outro, mais moderno, colocou uma máquina automática em frente sua casa e tudo funciona com moedas, não tem pessoas para atender.
Por duas vezes Ade fez comida no albergue. O aroma dos temperos invadia o ambiente e, vez ou outra, um peregrino se aproximava para saber um pouco mais e, a nosso convite, acabavam provando nossa comida.
Um norte-americano, dois franceses, um espanhol, uma chinesa e o gerente de um dos albergues provaram o tempero da Ade e adoraram. Um dia ela fez macarrão com linguiça e, em um outro dia, um delicioso risoto de polvo com champions, sempre acompanhado com um bom vinho.
OS RITUAIS
São muitos rituais e crenças no caminho. Uma enorme cruz de concreto pode ser vista por todo trajeto. Ela é erguida por fiéis em praças, quintais e no pátio da empresas.
Pequenas cruzes de concreto ou madeira são locais onde peregrinos deixam mensagens, objetos pessoais ou também empilham pedrinhas. Empilhar pedrinhas é o ritual mais comum do caminho.
O antigo peregrino empilhava pedras para marcar a rota e o atual alega que deixa nas pedras, seus arrependimentos espirituais. Tudo bem, empilhamos também. É legal equilibrar pedras irregulares.
A concha é a marca do peregrino que segue para Santiago. Elas estão à venda em vários locais e são de vários tamanhos. Muitos peregrinos as deixam pelo caminho, fixadas em árvores ou locais próprios, como se ali ficassem seus temores, suas mágoas e seus medos.
Ela se tornou símbolo do caminho por que os peregrinos que seguiam para Santiago, costumavam caminhar um pouco mais e chegar até o Oceano Atlântico, em Finistera, onde acredita-se que era o fim do mundo. Quem chegava até o mar, levava um concha para casa para provar que foi. Outra lenda conta que a concha era utilizada como utensílio para beber água e para comer.
Também existem os rituais da fotografia. Muitos monumentos, gestos e marcas do caminho são locais quase que obrigatório para fotos.
As fontes de água também marcam o caminho. É como um ritual parar para um descanso, tirar a mochila, as botas e ficar por alguns minutos descansando. Algumas fornecem água potável. Muitas foram construídas pelas prefeituras e outras por particulares, em frente suas casas.
Outro ritual a ser seguido, são os carimbos do caminho, que confirmam a caminhada. É preciso carimbar pelo menos duas vezes por dia para ter direito ao Certificado Compostelana, quando chegar a Santiago.
Os cafés e restaurantes procuram atrair os peregrinos, oferecendo o carimbo, tirando fotos para um mural na parede ou pedindo um recado escrito em um livro de registros.
Um me ofereceu uma bandeira do Brasil e pediu para eu deixasse uma mensagem e logo fixou nossa bandeira na parede do seu bar.
A beleza é por conta da natureza diversificada, das matas, das flores, das cores, dos sons, das águas, da arquitetura, das artes, que encantam o tempo todo, sem contar a beleza das pessoas que cruzaram nossos caminhos.
Muitos trechos são oportunos e ideias para meditação, caminhando acompanhado ou seguindo solitário.
A beleza das flores ajudam a impulsionar o peregrino com seu perfume e o colorido que enfeitam muros, janelas, jardins, vaso e até na mata elas encantam.
Além da alma, a natureza alimenta também o peregrino. As frutas são poucas mas mesmo assim, nos fartamos em algumas etapas.
Paramos para apanhar laranjas no pé. Depois uma senhora nos ofereceu suas frutas, depois um policial também nos deu laranjas e, sempre que disponível, compramos bananas e laranjas.
Encontramos um pé carregado com cerejas maduras, em um terreno sem cercas. Paramos e nos deliciamos. Como se fossemos os donos das cerejas, convidamos peregrinos que passavam sem perceber a fruta madura. Alguns, mesmo ressabiados, pararam e se deliciaram também.
Pelo caminho todo o canto dos pássaros inspirava a meditação. Muitas vezes, o som das águas convidaram para uma parada. Dava vontade de ficar mais tempo, mas o tempo é medido para chegar até o próximo destino.
Construções centenárias e modernas, ruas estreitas ou largas, dividem o espaço entre o novo e o antigo, encantando os olhos de quem passa atento pelo caminho.
Em Portugal chamou a atenção as fachadas das casas cobertas com azulejos.
Na Espanha as casas de pedra são os destaques, mas não uma pedra comum. São edificadas em granito, da mais pura qualidade, polidos ou brutos.
As pontes são belezas raras. Paramos em quase todas para admirar. Muitas ainda estão como foram construídas pelos romanos, com enormes pedras sobrepostas, que parecem resistir ao tempo por toda a eternidade.
A tradição também contribui para a beleza da arquitetura do caminho. Em muitas casas, especialmente as mais antigas, tem um Horreo, uma espécie de paiol, onde eles guardam batatas. Todos tem o mesmo formado, ficam afastados do solo e tem uma cruz sobre o telhado. Antigamente, a metade da produção era partilhada com a igreja.
Outra beleza da tradição, que deixou apenas marcas dos costumes, já abandonados por conta do modernismo, são os locais edificados para que as mulheres lavassem roupas. Hoje servem para o descanso de quem passa.
A arte também também é presente, especialmente na forma de esculturas e estátuas, que homenageiam ilustres do passado ou, simplesmente arte moderna.
Pela primeira vez, vimos uma escultura de uma galinha.
A emoção é constante, a cada momento uma nova sensação, mas a chegada em Santiago, supera todos os sentimentos.
Caminhamos pelas ruas estreitas do centro histórico, até chegarmos na Catedral, quando ainda faltavam quase duas horas para começar a missa dos peregrinos.
Fomos pegar nosso Certificado Compostelana, com a distância que percorremos pelo caminho.
Nos hospedamos em um hotel e voltamos na Catedral para assistir a missa dos peregrinos, ao meio dia. É pura emoção estar naquele templo após muitos planos, quilômetros percorridos, sonhos realizados e aquela agradável sensação de conquista, missão cumprida.
A missa do peregrino é celebrada todos os dias na Catedral, onde o maior Turíbulo do mundo, é a grande atração da cerimonia.
O Turíbulo, ou Botafumeiro de Santiago, é um incensário com 62 quilos, 1,60 metros de altura, que fica fixado a 20 metros no teto da igreja. Ele é balançado por oito homens vestidos com túnicas de veludo vermelho, os “tiraboleiros” e pode chegar a 70 km/h balançando dentro da Catedral.
Segundo a história, o Botafumeiro gigante foi instalado na Catedral de Santiago no século XI, com o objetivo de perfumar a igreja e eliminar o mau cheiro deixado pelos peregrinos, que chegavam suados e sujos.
No Turíbulo é queimado o incenso em honra de Deus e dos santos. Foi inicialmente usado nos cortejos romanos e depois adotado pela igreja católica.
O original, todo em prata, feito em 1554, foi roubado pelos bandidos comandados por Napoleão em 1809, mais tarde foi instalado um de latão banhado em prata, que está lá até hoje.
Muita gente chora, agradece, fotografa, fica pasmo, sem ação diante de tanta emoção.
Terminada a missa fomos abraçar a estátua de São Thiago, construída em prata e adornada com pedras preciosas.
É tradição que o visitante da Catedral suba a escadas para o “abraço do santo”, que consiste em abraçar a estátua pelas costas.
Depois visitamos o sepulcro do apostolo, onde fica o relicário com seus ossos. A tumba é a razão da existência do Caminho de Santiago.
Conhecemos a Catedral em detalhes, por dentro, por fora e em volta do complexo onde fica o santuário.
Ficamos agradecidos por aquele momento mágico, emocionados e fomos conhecer um pouco da cidade. Almoçamos e voltamos para o merecido descanso no hotel.
Dia seguinte, voltamos para o centro histórico e ficamos ao lado da Catedral, observando e fotografando peregrinos que chegavam a todo momento. Muitos parecendo perdidos, chorando, rindo, falando ao celular contando para os amigos da sua chegada, fotografando, mancando, felizes com a chegada.
Ali em volta da Catedral encontramos amigos do caminho, fizemos novos amigos, assistimos a missa novamente, nova emoção e passamos a tarde nos divertindo, assistindo a chegada dos emocionados e cansados peregrinos.
Cumprimentei uma senhora inglesa que tinha acabado de chegar, ela totalmente emocionada veio ao nosso encontro e me deu um forte abraço e depois na Ade. Não a conhecíamos, nunca a tínhamos visto, mas parecia que era nossa amiga de tempos. Abraçou e deixou jorrar suas lágrimas como se fosse uma criança.
Percebemos que existe muitos mitos em torno do caminho, muitas verdades e costumes que se perderam no tempo, que muito da motivação espiritual foi transformada em status social, em exibicionismo, em prazer de falar que fez o caminho.
Percebemos que é preciso planejamento antes de iniciar a caminhada, treinando por longas horas, se habituando com o peso da mochila, levando o essencial e adquirindo acessórios adequados.
Percebemos a importância das botas, das meias, do chapéu, das luvas, dos cajados, do protetor solar.
Percebemos a importância da vaselina para um peregrino. Sem ela os pés criam bolhas e pode interromper todo o planejamento. Vaselina nos pés, de forma generosa, todos os dias, não pode ser esquecido.
Percebemos que é preciso aprender com os acertos, as dicas e os erros de outros peregrinos, usando a internet como fonte de consulta e conversando com outros pelo caminho.
Percebemos sobre os limites e respeitos com nossa condição física, nossa resistência e nossa motivação para concluir cada etapa, que cuidar do corpo é uma necessidade fundamental.
Percebemos que os efeitos da caminhada dia após dia, deixará lembranças que somarão com nossas decisões por muito tempo.
Percebemos que a peregrinação é um ato espiritual, onde os pensamentos se elevam e questionam nossa existência, renovando nossa vontade de vencer, de procurar situações que nos deixam felizes, de perceber que precisamos de poucos bens materiais para alcançar e manter momentos de felicidade.
Percebemos como é bom, como é alegre, como é emocionante chegar no destino e cumprir a meta de cada dia.
Percebemos que o convívio com outras pessoas, de outras nacionalidades, não fica impedido por conta de idiomas diferentes, que a linguagem dos gestos é esclarecedora e que a paciência e boa vontade fazem parte da comunicação.
Percebemos que fazer amigos continua sendo uma prática encantadora.
Percebemos que a decepção pode ser revertida em novo plano e ser transformada em realização. Nos primeiros dias, questionamos sobre a tal magia do caminho. No passar dos passos, algumas respostas não ficavam claras, até que descobrimos que sequer perguntas nós tínhamos a fazer, que o prazer era simplesmente caminhar, todos os dias, buscando metas de curto e de longo prazo.
Percebemos que fazer o caminho é uma delícia, independente do propósito que cada um busca, simplesmente andar por caminhos direcionados.
Percebemos que somos simples por natureza, que quando os pensamentos e sonhos desejam, o universo realmente conspira a favor e a realização acontece conforme nossa imaginação.
Percebemos que os sonhos não devem cessar jamais. Mesmo antes de terminar, já começamos a pensar na próxima vez.
Missão cumprida, conforme nossos planos. Hora de voltar para casa.
Ficamos eternamente agradecidos pela nossa aventura, pela nossa experiência e pela nossa jornada como peregrinos. Voltamos melhores do que quando partimos. Oramos por cada um, pedimos um mundo melhor e pagamos com esforço, expondo os limites do nosso corpo e da nossa mente.
Eu e Ade há muito já somos fãs de Jesus, que sempre caminhou ao nosso lado. Agora conhecemos um pouquinho mais de Seu amigo Thiago, um homem de fé, de milagres, que revela àqueles que peregrinam em seu nome, a superação, a paz, o aprendizado, a sensação, a capacidade, o limite e a superação.
Thiago, o santo apóstolo de Jesus, que deixou muita história e até hoje motiva a fé em peregrinos de todas as crenças, tem agora mais dois admiradores.
…o caminho não termina em Santiago de Compostela.